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SUBSÍDIOS PARA A HISTÓRIA DE CRISTALINA, GOIÁS

 

 Por José Aluísio Botelho

(Publicado originalmente em 08/11/2022)

Breve histórico da região

 Este breve ensaio pretende fornecer subsídios para que se possa contar a história de Cristalina. Para isso, recorremos a dois personagens que estiveram nos sopés da Serra dos Cristais em diferentes épocas: ao primeiro, o naturalista austríaco Johann Emanuel Pohl, que em sua viagem pelo Brasil, lá esteve em 1818. Diz ele: "Por diversas vezes ouvi comentar em Paracatu acerca da riqueza da Serra dos Cristais com cristais amarelos e brancos de grandeza incomum". Vindo de Paracatu, atravessou o rio São Marcos, e os ribeirões São Firmino e Lajes até seu destino, onde encontrou o capitão Lima, de Mato Grosso, que lá morava com a mulher e um diarista e explorava uma grande mina ao ar livre e era o único a se aventurar no garimpo do mineral. Relata ainda o naturalista Pohl que existiam outras duas minas, menos importantes: uma ao norte, chamada São Pedro e a outra, insignificante, denominada Santo Antônio, à noroeste. Ao segundo, padre Raimundo Des Genettes, vigário colado de Santa Luzia (Luziânia), a quem pertencia a região da Serra dos Cristais, nome primitivo do lugar. De Genettes, francês de nascimento, brasileiro por adoção e opção, conheceu em minúcias os territórios do sertão da Farinha Podre e Paracatu em Minas Gerais, assim como grande extensão do estado de Goiás: foi ele o primeiro explorador da Serra dos Pirineus, situada na região de Pirenópolis. Multifacetado, era médico, exercendo a clínica e a cirurgia, jornalista, historiador, geógrafo e também estudioso da geomorfologia dos terrenos por onde andava, a Serra dos Cristais inclusa. Eleito deputado provincial goiano, lá pelos anos de 1882-83, defendeu arduamente os pequenos e míseros garimpeiros, que sobreviviam da extração rudimentar do cristal-de-rocha, contra os garimpeiros profissionais que queriam expulsá-los da região. Em janeiro de 1883, ele faz uma sucinta cronologia da prospecção e exploração do cristal na serra: segundo ele, entre 1804 a 1816, havia alguma animação com garimpo; entre 1816 e 1824 a extração do mineral reacendeu, e milhares de quilos foram remetidos para os mercados da Alemanha e Inglaterra; entre 1824 e 1865 houve alternativas de baixa e recrudescência no valor do cristal e a extração se sustentou; de 1865 a 1870, quase abandonada; a partir de 1870 a exploração da pedra preciosa se recrudesceu. É nessa época que na Europa, os estudos geopolíticos do continente indicavam a inevitabilidade de um grande conflito armado na região, que culminaria na primeira grande guerra mundial; nesse contexto, o cristal ganhava importância na indústria bélica, essencial na fabricação de radares, sonares, armas etc. Não é por acaso, a presença de pesquisadores europeus na região dos cristais, no lugar denominado Serra Velha, como o suíço Sturzenecker, que lá estava na década de 1870, e no final desta década, mais precisamente em 1879, dos franceses Ettiénne Lepesqueur e Leon Laboissière, que enviaram grande quantidade do mineral para a França, obtendo boa aceitação e bom preço pelo cristal enviado; lá permaneceram comprando o mineral até 1882, quando retornam à Paracatu após amealharem um bom cabedal. Em 1882, garimpeiros de Estrela do Sul compraram grandes extensões de terras na região e reivindicaram seus direitos inalienáveis sobre elas, até porque, não existia uma lei específica no império regulamentando o direito de exploração do solo e subsolo nas regiões de mineração. Um ano depois, em 1883, chega na região o francês Emílio Levy, trazendo gêneros de necessidade que trocava por cristal-de-rocha. Esse francês resolve então se fixar no lugar e constrói uma choupana na margem direita do ribeirão Almocafre, e, posteriormente, edifica a primeira morada em alvenaria da Serra Velha. Emílio Levy é considerado o fundador da povoação, nas palavras de um pioneiro e testemunha ocular da criação e evolução política-administrativa e social da povoação de São Sebastião da Serra dos Cristais, e primeiro intendente de Cristalina. Nicolau Batista de Oliveira. Na virada do século, os alemães Mohn, Edinger, Layser, também se estabelecem ali e se tornam influentes produtores e exportadores de cristal para a Alemanha e para a França. O desenvolvimento da Serra dos Cristais no último quartel do século dezenove era muito lento, havia poucas famílias de garimpeiros, e a presença de grandes proprietários de terras, impedia a expansão do garimpo. Já no alvorecer do século vinte, através da lei municipal nº15 de 12 de outubro de 1901, o lugar passa a se chamar São Sebastião dos Cristais, pertencente à comarca de Luziânia. Em 1904, a povoação tinha 30 casas cobertas de telhas e 70 ranchos cobertos de palha, com cerca de 500 habitantes; nesta época houve o primeiro movimento de emancipação, quando foi elaborado um abaixo-assinado pelos moradores, capitaneado pelo francês Emílio Levy, e entregue ao governo estadual, solicitando a demarcação do perímetro urbano da localidade; a tentativa foi mal sucedida diante da resistência dos grandes fazendeiros, que se diziam os legítimos proprietários das terras que circundavam o arruado. Por fim, o êxito só seria alcançado com a criação da vila em 16/01/1916, bem como do município autônomo, desmembrando-se de Luziânia por lei provincial de 18/07/1916. A instalação só seu deu no ano seguinte, em 15/01/1917, com o nome de Vila de São Sebastião dos Cristais. Por último surge Cristalina por lei estadual n. º 577 de 31/05/1918. A título de ilustração, em 1907 o distrito de São Sebastião dos Crystaes era administrado pelos seguintes pioneiros do lugar:

Juiz Distrital - João Modesto Batista dos Santos, de Estrela do Sul;

Subdelegado - Nicolau Batista de Oliveira, baiano;

Escrivão - Marciano Aguiar, de Estrela do Sul;

Coletor - Jovino de Paiva, de Estrela do Sul;

Professor escola mista - Dona Maria Cotta Pacheco, esposa de Jovino de Paiva.

   Fundação da população da Serra dos Crystaes, hoje Villa Crystalina

                  (transcrito do jornal "Informação Goyanna" de 1819)

     A fundação da população da Serra dos Crystaes, tem sua origem na exploração do Crrystal de Rocha, de onde deriva o seu sobrenome. Há mais de cem annos, vindo de Paracatú, passando por aqui em demanda dos sertões de Goyaz, em procura do ouro, os bandeirantes descobriram nesta Serra a existencia desse minerio; tratarão de explorar, porém, vendo que era de pouco valor, abandonaram. Mas pelos vestígios deixados por elles, outras pessoas de quando em quando extrahiam pequenas quantidades, e a título de amostras mandavam para São Paulo e Rio de Janeiro.
     Porém, até aquella occasião não sendo conhecido o valor do Crystal e nem tão pouco o mercado que podia ter collocação, desacoroçoarvam com a exploração.
     E nesta vacilação permaneceu até 1879, época em que os franceses, Etienne e Leon Labouciére (sic), residentes em Paracatú, obtiveram aqui uma pequena partida de Crystal, fizeram remessa para Paris, e alli sendo conhecida a boa qualidade do Crystal, pediram nova remessa. Etienne e Leon viera a Serra dos Crystaes, abarrancaram´se no logar denominadp Serra Velha, e alli estabeleceram a compra de crystaes. Nessa época, 15 Kilogramas de crystal custavam apenas 6$000 (seis mil réis, grifo nosso). Os habitantes dos arrabaldes affluiram alli com grande frequencia; uns extrahinndo crystaes e outros explorando o commercio de genero do paiz.
     Etienne e Léon, com o commercio de crystal, adquiriram boa fortuna e voltaram novamente à Paracatú, em 1882. Não havendo comprador de crystal, os mineiros começaram a desprezar. Porém, logo, inesperadamente, chegou o francês Emílio Levy, com o mesmo ideal de explorar o commercio de crystal. Alojou-se em uma cabana coberta de capim, à margem esquerda do Corrego Almocafre, e um anno depois construiu uma casa regular; foi o primeiro edifício que se erigiu neste lugar. O nome de Almocrefe, que tem o corrego já referido, provem de um instrumento usado naquelle tempo pelos trabalhadores, na extracção do crystal. 
     Portanto, a primazia da fundação da actual população, cabe a Emílio Levy, e não a Carlos Haas, no seu artigo inserido nas columnas desta revista, sob a epigraphe: "Uma excursão à Serra dos Crystaes". Quando Carlos Haas tocou à Serra dos Crystaes a sua população já existia já há vinte annos. Os maiores propugnadores na fundação da actual população foram os seguintes cavalheiros: Emilio Levy, Francisco Cotta Pacheco, João Modesto Baptista dos Santos, Jacob Batista Marra, Fernando de Paula Rodrigues, Joaquim Verissimo de Souza, Joaquim José Grota e Joaquim Alves Ferreira. Pela iniciativa dos actuaes habitantes e com o concurso das suas riquezas naturaes, a qual é inegavel, e já bem conhecida dos leitores, a Serra dos Crystaes está reservada para um futuro risonho.
     Mas, a glória de sua fundação se deve os cavalheiros referidos, que contribuiram moral e pecuniariamente para o seu progresso e desenvolvimento.
                                  Villa Crystalina - Maio de 1919.   
                                                                             Nicoláo Batista de Oliveira
Considerações finais

A história do surgimento da povoação que deu origem à Cristalina ainda é controversa. A maioria dos autores que debruçaram sobre o tema afirmam ter sido os franceses Lepesqueur e Laboissière os fundadores do núcleo populacional inicial, no que discordamos. O grande historiador mineiro Waldemar de Almeida Barbosa, qualifica como fundadores de arraiais e vilas em Minas Gerais, ao proprietário de terras que doavam uma sorte delas, sob invocação de um santo de sua devoção, à igreja, e que nelas se erigissem uma capela para as práticas religiosas dos moradores da região. Como consequência, ao redor da dita capela iam se instalando moradores, pequenos comércios e até escolas, propiciando a formação do núcleo inicial da povoação. Parece não ter sido o caso de Cristalina: lá existiu aglomerados de cabanas e choupanas provisórias usadas pelos garimpeiros à cata de cristais de rocha, abandonadas com o desânimo dos aventureiros diante do baixo valor do mineral no mercado da época. O que se tem de fato é a construção, pelo francês Emílio Levy, de uma casa, edificada em alvenaria, na margem direita, onde iria surgir a povoação de são Sebastião, que ficou eternizada com Cristalina Velha, hoje o bairro mais antigo da cidade. Não se sabe quem invocou São Sebastião como santo padroeiro do lugar, bem assim ainda não há notícias da existência de templo católico (religião predominante naquele tempo) na Serra dos Cristais. Certo é que em 1907 a capela de São Sebastião já existia, e foi um dos seus primeiros vigários o padre Domingos de Moraes sarmento.
Por fim, a luz do que a história conta, e diante do relato de Nicolau Batista de Oliveira, testemunha ocular da história, cremos que se deve creditar ao francês Emílio Levy a galhardia de fundador de Cristalina.
Sobre Emílio Levy, nada se conhece sobre sua vida, que rumo tomou. Só se sabe que ele foi grande explorador e exportador de Cristal ao lado dos alemães e dos mineiros de Estrela de Sul que para lá acorreram, bem como exerceu atividades agropecuárias, exportando gado e borracha extraída da seiva da Mangabeira, abundante no cerrado da região.  
Sobre Nicolau Batista de Oliveira: natural da Bahia, estabeleceu na Serra dos Cristais nos seus primórdios. Tornou-se incansável, com outros pioneiros, na luta pela emancipação da região, e pela criação de um município autônomo, desvinculado da comarca de Luziânia. Foi seu primeiro intendente e permaneceu no cargo até 1925, participando ativamente na consolidação política, econômica e social da localidade que nascia com porvir de futuro auspicioso. Doente, procurou tratamento médico em Araguari, onde faleceu em 13/12/1927. Foi totalmente esquecido pelo poder público da cidade que ajudou a criar, desmerecido de homenagens, ao não ser imortalizado com seu nome em algum logradouro público, tais como rua, avenida, praça, etc.   

Fontes:
Pohl, Emanuel Johann. Viagem no Interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976;
Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional do Brasil. Jornais da época.     

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